sábado, 29 de agosto de 2009

A alma do Número 8

Certo dia, já lá vão muitos anos, quase andei à pancada com um indivíduo na rua. Eu, habitualmente interventiva de palavra e não de punho, quase me descontrolei perante a estupidez chapada de um “cidadão” de Lisboa.
Tudo porque, enquanto um magnífico edifício se desmoronava, o dito ria às gargalhadas.
Nesse momento, confesso, o que o salvou do meu soco foi a sua postura de mosca. Uma tonta varejeira, voando à volta da carne podre. Como aqueles insectos que se acotovelam, para ver os atropelados. Homens ou animais moribundos, gemendo nas calçadas.
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Teorizem o que quiserem. As casas também têm alma.
Têm a alma de quem olhou um buraco no chão e viu uma janela aberta, com pessoas a espreitar. A alma do menino que corre nos corredores, atrás das saias da sua mãe. A alma dos infinitos amores, vividos em todos os cantos. Dos cheiros amargos e doces, vindos do fogão da cozinha. De todos os risos, choros, palavras e penas, suspensas entre as paredes.
As casas também choram.
Choram quando sabem que - muito por incúria dos homens - chegou a sua hora de morrer. Nos seus corredores vazios chora, em uivos, o vento. Nas suas empenas gemem as madeiras, já sem força para se agarrar.
Desespera a alma do menino, correndo ainda atrás da vida, que há muito se perdeu.
- Apesar da raiva e da tristeza, agora entendo o pobre que ri por ver ruir uma casa.
Sabe-lhe bem pensar que - ainda que só desta vez - não é a sua vida, a sua casa, ali espalhada e espalmada, contra as pedras da calçada.
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Notas de rodapé:
Todas as fotografias aqui publicadas - à excepção das da última “montagem” - foram tiradas por mim no final de Junho de 1991, dias antes da implosão do número 8 da Avenida Fontes Pereira de Melo.

Após 3 anos com as fotos à espera de um texto (que deveria ter sido o primeiro do blogue), hoje acordei com este na cabeça.
Esteja como estiver, foi como a minha alma o largou.
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4 comentários:

Bic Laranja disse...

Mesmo que não tivesse alma tinha toda a riqueza que apenas se entrevê nas suas fotografias. Não fazia ideia dos interiores.
A riqueza também anda muito mal compreendida, parece-me.
Cumpts.

Luciana disse...

Todo o interior daquela casa era um encanto! Mesmo quando já estava meia demolida, para facilitar a implosão. Por exemplo, quase tudo o que era em madeira foi arrancado nos últimos dias. Maravilhosos pormenores em Arte Nova!...

Fico doente de me lembrar do destino daquela casa! Se visse o meu desespero...
No último dia em que lá estive fiz um mapa total da casa, na caixa do rolo de fotografias. Está ainda guardado no álbum.

Tenho mais fotos dos interiores, que talvez venha a publicar mais tarde.

É uma coisa que ainda mexe muito comigo. Principalmente por vê-la tão reproduzida por aí…

Abraço

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Luciana R. da Gama disse...

E agora já todos os seus vizinhos foram demolidos. E toda a zona está contaminada de mamarrachos! :-(